A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgamento recente[1], reconheceu o sócio devedor como detentor de legitimidade e interesse para impugnar decisão judicial de desconsideração inversa de personalidade jurídica de empresa que titula como sócio.
Inicialmente cabe contextualizar que o art. 49-A do Código Civil, introduzido pela Lei da Liberdade Econômica, indica com clareza que a personalidade jurídica da sociedade empresária tem autonomia, independência em suas receitas e em suas responsabilidades, sendo completamente desvinculada da pessoa ou patrimônio de seus sócios.
A quebra da autonomia supramencionada é denominada desconsideração da personalidade jurídica e caracteriza-se pela violação no uso da personalidade jurídica, sendo medida excepcionalíssima que é admitida somente na hipótese de abuso da personalidade detectado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, conforme previsão do artigo 50 do Código Civil.
Desta forma, a desconsideração de personalidade jurídica poderá ocorrer tanto na sua modalidade direta, ou seja, desconsiderando a pessoa jurídica para atingir o patrimônio do sócio, quanto na sua modalidade inversa, desconsiderando o sócio para atingir o patrimônio da sociedade empresária.
No julgamento em apreço, o sócio figurava como executado e foi proferida decisão para incluir no polo passivo da lide as empresas nas quais o executado figurava como sócio, responsabilizando-as pelo adimplemento do crédito.
Tal decisão foi objeto de recurso pelo sócio e o Tribunal de Justiça do Distrito Federal entendeu que ele não seria legítimo e não deteria interesse na insurgência recursal por interpretar que, no incidente de desconsideração de personalidade jurídica, é chamado à defesa a pessoa ou o sócio cujo patrimônio será alcançado com a pretensão e, no caso, a Câmara firmou entendimento que a decisão não traria prejuízo ou consequência ao patrimônio do sócio executado, como pessoa física.
Posteriormente, a questão de direito foi apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça que reverteu a decisão proferida pelo TJDF, afastando a interpretação restritiva da norma processual sobre o incidente e, consequentemente, reconhecendo o interesse recursal e legitimidade do sócio para impugnar a decisão na condição de terceiro assistente.
A análise da relevância se deu pelo vínculo do executado com outros sócios e por eventuais consequências na estrutura societária que possam decorrer dos atos de abuso da personalidade perpetrados pelo executado. Nas palavras do Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze:
“Em relação à desconsideração inversa, impende destacar que, a despeito da autonomia entre a pessoa jurídica e as pessoas dos respectivos sócios, o surgimento da pessoa jurídica deriva da manifestação de vontade da pessoa natural destes sócios, através do liame psicológico estabelecido entre eles, o qual se entende por affectio societatis.
A propósito, tal aspecto volitivo é de notável relevância, sobretudo para as sociedades de pessoas (aquelas constituídas em função da pessoa dos sócios). Tanto que, havendo a quebra desse vínculo, a consequência é a dissolução da sociedade, seja ela parcial ou integral.
Dessa forma, nada mais justas as pretensões eventuais do sócio devedor de integrar o incidente de desconsideração inversa, bem como de impugnar decisão concessiva do pedido, tendo em vista a possibilidade de influir na relação existente entre o executado e os demais sócios, acarretando a quebra da affectio societatis, a revelar, nessa medida, a sucumbência.”
Já em relação a análise da forma de intervenção o Ministro bem ponderou:
“(…) Portanto, sobressaem hialinos o interesse e a legitimidade do sócio devedor tanto para figurar no polo passivo do incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica, quanto para impugnar a decisão que lhe ponha fim – seja na condição de parte vencida, seja na condição de terceiro em relação ao incidente – em interpretação sistemática dos arts. 135 e 996 do CPC/2015, notadamente para questionar sobre a presença ou não, no caso concreto, dos requisitos ensejadores ao deferimento do pedido.”
O julgado é precedente significativo na interpretação da norma legal, em especial, porque pontua a legitimidade e o interesse do sócio executado em se insurgir, como terceiro, no incidente de desconsideração inversa de personalidade jurídica, defendendo o patrimônio da sociedade responsabilizada pelo adimplemento do seu débito.
Por Ana Paula Maida Martins
[1] REsp n. 1.980.607/DF, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 09/08/2022, DJe de 12/8/2022.